Além de ser
um livro que abre o apetite com os pratos veganos, que aguça a curiosidade para
com processos e entidades (a Holy Hill existirá?, pergunta o leitor), que
enamora para o estilo de vida, para a liberdade de se ser vegano, é um livro
que se devora, com um ritmo e até uma poesia (como no caso do corvo)
extraordinários!
Antes de
dizer que fiquei seu fã, eu gostava de lhe pedir novamente licença fazer uma
leitura parcial do capítulo Fá, (aquele episódio de discussão/guerra à mesa...)
para uma nova sessão de escritores veganos que farei aqui no Porto.
E agora
sim, posso dizê-lo: fiquei seu fã!
Um abraço
Nuno
Meireles
Ups, o capítulo a que me
referia não é Fá, mas Lá... E adorei que os capítulos fossem os gatos!"
Comentário da poetisa portuguesa Andreia C.
Faria (dezembro de 2013 no Facebook): "A Regina deixou-me uma sensação de grande leveza. É
preciso que alguém escreva sobre estes temas de uma forma menos sofrida (e não
quero com isto dizer menos comprometida, menos sentida), com mais humor, com
mais intimidade, digamos. Algumas das personagens e situações que ela descreve
têm aquele tipo de exuberância que às vezes se encontra nas telenovelas
brasileiras, e olha que não seria desmérito para a Regina que alguém fizesse
uma telenovela ou uma série a partir deste livro. Há aqui um sentido didáctico,
de missão, como bem dizes, mas nem o estilo da Regina nem as personagens são
meros ventríloquos. Sentimo-los bem de carne e osso, bem palpáveis. Eu
reconheci-me em tantas das certezas e contradições. E sobretudo agrada-me esta
ideia de festa, de ajuntamento, de celebração. Que o veganismo seja uma forma
de celebrar o corpo, a vida, que a comida seja uma arma da luta de classes e um
instrumento de discussão e de amor entre amantes."
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Entrevista dada por Regina Rheda à Revista dos
Vegetarianos, publicada parcialmente dentro da matéria “Vegetarianismo entre
linhas” em agosto de 2013.
Pergunta: Por que decidiu se tornar
escritora?
Regina
Rheda:
Eu fazia cinema e TV antes, o que envolvia grandes equipes, muitos
equipamentos, grandes orçamentos, etc. Decidi me tornar escritora de romances e
contos para poder criar ficção com mais autonomia e economia.
Pergunta: Para você, o que é um livro
bom?
Regina Rheda: Para mim, um livro bom é aquele que é
escrito com imaginação, poesia, habilidade para surpreender, comando do idioma
e, de preferência, ideias que não sejam reacionárias.
Pergunta: O tema central de Humana
festa é os direitos animais. Por tratar de um tema tão polêmico, você teve
dificuldades para publicar seu livro? Não precisa citar nomes, só queria saber
se o livro ou outro trabalho seu chegou a ser recusado por alguma editora
justamente porque falava sobre esse tema. Existe esse tipo de preconceito no
meio editorial?
Regina
Rheda: O
meu romance Humana festa foi aceito
logo pela primeira editora que eu procurei: a Record. Essa editora estava
interessada em publicar livros de ficção com a temática animal. O fato de meu
livro ser um romance com cara de romance mesmo, e não de puro panfleto ou
ensaio, obviamente pesou a favor de sua publicação. Não acho que exista
preconceito contra o tema direitos animais entre os editores; acho que existe
mais falta de conhecimento sobre o assunto do que preconceito mesmo.
Pergunta: A defesa animal pode ser vista
como assunto “chato” por um grande número de pessoas. Quais recursos literários
você costuma utilizar para falar sobre isso sem deixar o leitor perder o
interesse pela história?
Regina
Rheda:
Uso humor. Desenvolvo uma narrativa que seja envolvente e tenha uma boa dose de
surpresas. Uso lirismo. Incluo informações que os leitores em geral não têm.
Alterno momentos alegres com momentos tristes. Procuro criar personagens
humanos intrigantes, com algumas características inusitadas (para satisfazer a
curiosidade dos leitores em relação ao “diferente”) e outras características
que sejam comuns a todos nós (para que os leitores se identifiquem). Tento
criar personagens animais fascinantes e cativantes. Provoco os leitores,
incentivando-os a tomarem partido, ou a pelo menos se engajarem, nos conflitos éticos
apresentados.
Pergunta: Na sua opinião, de que modo a
literatura pode ajudar a causa animal?
Regina
Rheda:
No mínimo, de dois modos. Primeiro: a literatura de ficção pode funcionar como
motivação ou ilustração. Por exemplo, uma história pungente sobre um animal
pode despertar a empatia dos leitores em relação aos animais em geral, mexendo
com a emoção desses leitores e tornando-os mais receptivos a uma futura
mensagem moral para se tornarem veganos. Segundo: a literatura pode ir mais
fundo e direto ao que importa, colocando em foco o imperativo moral da abolição
da exploração animal. Nesse caso, a escritora ou escritor deve mostrar com
clareza, usando muita criatividade
artística, que os humanos precisam parar de usar os animais sencientes como
recursos ou propriedade. Creio que no Humana
festa eu combinei os dois modos, mexendo com a emoção dos leitores e
apresentando claramente uma visão de mundo vegana. O livro tem sido usado,
tanto em português quanto em inglês, em cursos de literatura latino-americana
de universidades americanas. As professoras me informaram de que os alunos
geralmente gostam muito dele e que ele gera ótimas discussões em classe.
Pergunta: Isaac Singer, J.M. Coetzee, você, Jonathan Foer, Tolstoi, George Bernard
Shaw, Mary Shelley… Em forma de ensaio, romance, conto... Muitos escritores já
falaram sobre a moral vegetariana de um modo ou de outro. Levando em conta a
causa, acha que falar da defesa animal usando a literatura é mais fácil ou mais
difícil se compararmos com outras formas de arte, como o cinema, por exemplo?
Por quê?
Regina Rheda: Meu romance Humana festa é radical, abordando o
veganismo e a necessidade de abolirmos totalmente a exploração de todos os
animais sencientes. Como você já sabe, nenhum desses autores que mencionou tem
essa abordagem. Por essa razão, ou principalmente
por essa razão, meu romance é considerado pioneiro. Quanto à literatura ser
mais fácil ou mais difícil do que outras formas de arte... para mim, é mais
fácil fazer literatura do que audiovisuais como cinema, etc. Acho o trabalho
solitário de imaginar e escrever mais prazeroso e simples que o de negociar
arte com equipes, atores, produtores e equipamentos complicados. Mas o mais
importante: eu não filmaria o Humana
festa, porque os audiovisuais
continuam usando animais treinados como “atores”. Em livro, os animais não são
“reais”; eles são feitos apenas de letras.
Pergunta: Dos nomes que citei, só você é brasileira, mas já vive há um tempão nos
Estados Unidos (e pelo que sei foi aí que aprofundou seu conhecimento sobre
veganismo, né?). Por que será que o Brasil não produz tantos escritores veganos
quanto os Estados Unidos ou Inglaterra, por exemplo?
Regina Rheda: Mas esses escritores ingleses
e americanos a que você se refere não são veganos não, e sim vegetarianos ou
coisa do tipo. Pelo menos essa é a informação que eu tenho no momento. Então
esses escritores continuam explorando os animais por seu leite, ovos, e seja o
que for que os vegetarianos normalmente comem. Bem, de qualquer forma, o Brasil
ainda tem um problema muito grave: falta de apoio à educação. Sem educação, não
há ideias, nem escritores, nem leitores. E certas ideias progressistas (por
exemplo: o veganismo), que vieram de países que dão mais apoio à educação,
demoraram para chegar no Brasil. Mas, com o advento da internet, o acesso às
ideias aumentou bastante. E a presidenta Dilma Rousseff prometeu investir em
educação. Assim, acho que no futuro teremos mais escritores virando veganos e
escrevendo sobre veganismo no Brasil.
Pergunta: O que você está lendo agora?
Regina Rheda: Agora estou lendo um livro de
contos muito elogiado aqui nos Estados Unidos, do autor americano contemporâneo
George Saunders: Tenth of December.
Não é sobre a causa animal não...
Pergunta: Qual será o próximo livro? E quando será publicado?
Regina Rheda: Não sei. Por enquanto estou
lendo muito e fazendo muitas anotações para um novo projeto. Vamos ver no que
vai dar.
Pergunta: À parte Humana festa, qual
livro sobre defesa animal deveria ser lido por todo mundo que se interessa pela
vida dos bichos? Por quê?
Regina Rheda: Todo mundo precisa ler o livro
Introdução aos direitos animais, do
professor americano de Direito e Filosofia Gary L. Francione. Está para sair no
Brasil pela Editora da Unicamp. A tradução é minha. É um livro imprescindível
que explica, de maneira simples e direta, as razões filosóficas, éticas,
ambientais e de saúde humana para pararmos de usar os animais e nos tornarmos
veganos.
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Entrevista dada por Regina Rheda a Alexandra
Isfahani-Hammond, professora de literatura da Universidade da Califórnia/San
Diego, em outubro 2009.
REGINA RHEDA: AS RELAÇÕES
HUMANO-ANIMAIS NO ROMANCE HUMANA FESTA
Nascida em Santa Cruz do Rio
Pardo, Regina Rheda se formou em Cinema pela Escola de Comunicações e Artes da
USP em 1984. No início dos anos 1980s, ela fez parte da banda de rock
Esquadrilha da Fumaça e, de 1980 até 1990, escreveu e dirigiu vídeos e filmes
de curta-metragem que foram premiados em alguns dos festivais mais prestigiosos
no Brasil. Mas Regina é conhecida principalmente como uma das grandes
escritoras brasileiras contemporâneas. Em obras que incluem Arca sem Noé - histórias do edifício Copan (1994, prêmio Jabuti em 1995), Pau-de-arara classe turística (1996), Livro que vende
(2003) e First World Third Class
and Other Tales of the Global Mix (2005), ela transmite uma visão ao
mesmo tempo empática e irônica dos choques de cultura, das armadilhas do amor
romântico, da globalização e seus descontentamentos, e dos comportamentos e
atitudes eticamente esquizofrênicos. Em 2000, Regina tornou-se vegana e
defensora da abolição da exploração dos animais não-humanos. Em seu romance
mais recente, Humana festa (2008),
ela encara, de maneira frequentemente hilária, a cegueira moral que está por
trás das racionalizações pela objetificação dos animais não-humanos, e a
relação entre o especismo e outros modos de exclusão baseados em raça, gênero,
classe e nacionalidade. Assim como a trajetória da própria escritora, que
começou na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo (SP) e chegou, por enquanto, à
Flórida, a ação de Humana festa se
divide entre o interior paulista e o pantanal floridiano. Com humor e a aguda
sensibilidade multicultural de quem já passou por várias fronteiras, seu
romance aborda os mal-entendidos de um casal brasileiro/estadunidense, enquanto
articula os conceitos do veganismo e da abolição da escravidão dos animais.
Seja dentro ou fora do Brasil, o Humana
festa é um romance sem precedente devido ao seu engajamento explícito com a
teoria dos diretos animais e, mais especificamente, com os argumentos do
abolicionista e professor de Direito Gary Francione, cuja convicção de que os
animais devem ser reconhecidos como pessoas constitui o argumento mais coerente,
já desenvolvido até agora, pelo fim de seu uso como propriedade. Nas páginas
seguintes, Regina responde perguntas sobre sua trajetória criativa, suas
influências éticas e artísticas, e suas experiências tanto como cidadã global
quanto como vegana num mundo antropocêntrico.
AIH: Quais
os escritores que tiveram mais influência sobre seu trabalho, ou
estilisticamente ou devido à sua sensibilidade quanto às relações
humano-animais e outros modos de esquizofrenia moral?
RR:
Primeiro, preciso dizer que foi só depois de publicar três livros que comecei a
me preocupar, de verdade, com a questão animal. Meu modo de escrever sobre os
animais antes de 2000 (quando me tornei vegana, ou vegan) era muito diferente do modo como passei a escrever sobre
eles depois, em contos como “O santuário”, “Dona Carminda e o príncipe” e “A
frente”, um pouco no romance Livro que
Vende, e, principalmente, no romance Humana
festa. No Humana festa, eu
critico a visão de mundo especista que transforma os animais não-humanos em
propriedade ou mercadorias dos animais humanos.
Meus autores favoritos são Machado
de Assis, Eça de Queiroz, Graciliano Ramos e outros modernistas brasileiros. Macunaíma me marcou muito, tanto o livro
quanto o filme. Também gosto bastante de Margaret Atwood e Gore Vidal. Acho que
a influência desses autores pode ser encontrada em meu estilo, particularmente
no registro irônico e humorístico.
Aderi à ideologia
abolicionista, que é a favor da abolição da exploração animal, lendo,
principalmente, o filósofo e advogado estadunidense Gary L. Francione. Antes
disso, eu já havia me informado sobre a ligação entre o patriarcado, o consumo
da carne e o sexismo, lendo a feminista Carol Adams. A afroamericana Alice
Walker escreveu ficção com uma abordagem ecofeminista. Uso uma declaração dela
como uma das epígrafes do Humana festa:
“Os animais do mundo existem por razões próprias. Eles não foram feitos para os
humanos, assim como os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres
para os homens”.
AIH: Que
efeitos seu engajamento na defesa animal teve em sua literatura?
RR: A defesa
da causa tem influenciado muito a minha escrita, quanto à temática e à
estética. Tenho tido de trabalhar bastante na carpintaria da minha literatura
para evitar que críticos conservadores ou puristas a descartem, logo de saída,
como uma mera “doutrinação” ideológica. Minha intenção principal não é
“doutrinar”, e sim me expressar artisticamente; de quebra, quero ajudar a mudar
o mundo. Mas sei que a sociedade não vai mudar só por causa de um romance. E
tenho consciência de que expor literariamente a injustiça da exploração animal,
num meio que ainda considera usar animais tão normal quanto respirar, é
arriscar-se a suscitar verdadeiros paroxismos de ansiedade carnívora na chamada
“reação”, por mais trabalhada que seja a forma dessa literatura.
AIH: Sua obra aborda opressões
interligadas, choques de cultura e espaços intersticiais. Como é que suas
viagens, incluindo a experiência de brasileira na Flórida, influenciaram sua
perspectiva sobre o “global mix”?
RR: Eu tenho fascínio pela diversidade
cultural, social, ambiental, etc., como material para a criação literária.
Então sempre estive atenta a todas as minhas experiências, no Brasil e fora do
Brasil, que pudessem ser reelaboradas em ficção de maneira instigante,
inusitada ou curiosa para meus leitores ideais. Foi por isso que a cosmópole
São Paulo, onde vivi durante mais de 30 anos, me inspirou a estrear na
literatura de ficção com o livro de contos Arca
sem Noé – histórias do edifício Copan, que foi publicado também em inglês,
num volume da University of Texas Press, em 2005. Depois escrevi o romance Pau-de-arara Classe Turística, com um
tema transnacional, em que uma personagem pícara brasileira tenta virar cidadã
europeia, aventurando-se pela Inglaterra e a Itália. O Pau-de-arara Classe Turística também foi traduzido e publicado em
inglês no mesmo volume que o Arca sem Noé.
O volume se chama First World Third Class
and Other Tales of The Global Mix e inclui três contos “transnacionais”
meus.
Trabalhar
com o surpreendente ou o inusitado me desafia a procurar formas menos comuns de
expressar os efeitos da surpresa, do diferente. Gosto de elaborar sobre
conflitos de todo tipo, porque esse trabalho permite que eu me coloque de um
lado do conflito de cada vez, num jogo que eu considero prazeroso, muito
semelhante ao de uma atriz que vive trocando de papéis. No romance Humana festa, eu dou voz a todas as
partes. Mas isso não significa que o livro tenha uma posição ética relativista.
Ao contrário, tem uma visão de mundo inequívoca.
AIH: Temos
presenciado uma onda de atenção intelectual à questão moral do uso dos animais.
Mais notavelmente, em “L’animal que donc je suis” (2002), Jacques Derrida
compara a superprodução e o extermínio dos animais nos abatedouros e
laboratórios de experimentação com os piores casos de genocídio. Por outro
lado, a maioria dos acadêmicos e intelectuais continua a pensar nos animais só
como idéias ou símbolos a serem desconstruídos. Quais são as chances desses
intelectuais lerem a obra de Derrida, ou então o Humana festa, e repensarem mais radicalmente suas relações com os
animais não-humanos de carne e osso?
RR: De fato,
o número de março de 2009 da Publications
of the Modern Language Association of America, que é a mais importante
revista acadêmica americana sobre estudos literários, foi dedicado
principalmente à questão da animalidade e aos Animal Studies, trazendo uma série de ensaios sobre o assunto. Mas,
se essa onda de preocupação com os animais é nova no Ocidente, não é novidade
nenhuma entre os seguidores do jainismo, uma religião nascida na Índia há mais
de 3 mil anos. Os jainas, ou jainistas, norteiam-se pelo princípio da Ahimsa,
ou não-violência, e são contra causar dano aos animais. Normalmente são
vegetarianos, mas muitos estão se tornando veganos por perceberem que todo uso
de animal constitui violência.
Esse interesse dos intelectuais
ocidentais pela animalidade na literatura e em outras formas de arte e conhecimento
humano só fará sentido se resultar numa prática do veganismo por parte desses
intelectuais e seus discípulos. Este é um daqueles casos em que o objeto
estudado precisa ser o principal beneficiário do estudo!
AIH: Para muitas pessoas, a questão dos
direitos dos animais continua a ser vista como uma proposta não séria. Como o Humana festa tem sido recebido no
Brasil, até agora?
RR: Estando nos Estados Unidos há 10
anos, não tive controle sobre a divulgação e a distribuição do livro. Então,
não sei dizer até que ponto seu tema principal, que é veganismo/direitos animais, teve, ou deixou de ter, potencial para
atrair o interesse dos críticos e leitores.
Com certeza
Márcio Seligmann-Silva, respeitado ensaísta, professor de literatura comparada
e teoria literária, além de favorável à causa dos direitos animais, deu todo
seu apoio ao livro, o que ficou demonstrado na orelha que ele escreveu e em
comentários que ele fez privadamente. O próprio fato de o livro ter sido publicado
pela editora Record, uma das maiores e mais poderosas editoras do Brasil,
indica apreciação pelo seu tema e qualidade.
A julgar pelos e-mails que tenho recebido e outros comentários que tenho
lido on line, quase todo mundo que leu o Humana
festa teve uma reação extremamente positiva, referindo-se sobretudo à sua
força narrativa, ao prazer proporcionado pela sua leitura e à sua posição a
favor dos animais. Porque a verdade é que quase todas as pessoas de todas as
culturas deste mundo se preocupam com os animais e acham errado causar-lhes
sofrimento e morte sem necessidade. Cabe aos veganos informá-las de que o
consumo de animais sempre envolve sofrimento e morte, e que o veganismo não é
apenas possível, como também necessário por razões ligadas à ética, à saúde
humana e ao ambiente.
AIH: Os personagens de Humana festa são tão vívidos que, para
mim, foi impossível deixar de
imaginar a sua adaptação cinematográfica. Especialmente no caso da Dona
Orquídea, com sua saia de algodão, camiseta de propaganda, sandália havaianas e
lenço banhado em alfazema. Como você vê o impacto de sua carreira de
cineasta sobre sua voz literária?
RR: Tenho uma vocação para o
audiovisual e a performance. Eu me formei em Cinema, na Universidade de São
Paulo e, durante 10 anos, trabalhei e ganhei prêmios na área de roteiro e
direção de curtas, longas e vídeos. Minhas neochanchadas musicais estão entre
os filmes que iniciaram o boom do curta brasileiro nos anos 1980s, e esse boom
do curta precedeu a chamada “retomada” da produção de longas metragens de boa
qualidade no Brasil, após uma das crises vividas pelo cinema nacional. De
qualquer maneira, acabei migrando para a literatura e ganhei um prêmio Jabuti
com o meu livro de estreia, Arca sem Noé
– histórias do edifício Copan.
O Humana festa só poderia ser
filmado com a ajuda de muitos efeitos de animação, já que sou contra forçar
animais a serem “atores” em qualquer tipo de entretenimento que seja. No
próprio livro, debaixo dos dados sobre o copyright, eu fiz questão de colocar
este aviso: “A autora só permite a transposição do romance Humana festa para formas de arte e comunicação que não usem animais
verdadeiros”.
AIH: Em Humana festa, você retrata a realidade da fazenda industrial e a
ideologia do veganismo dentro de uma narrativa com muitos toques de humor. Como
você entende o papel do humor no esforço para efetuar mudança social e, mais
especificamente, para aumentar a conscientização sobre os direitos animais?
RR: O humor e a ironia são muito
marcantes no meu trabalho. Entendo que, no meu romance, o humor combina duas
funções. Uma é a de cativar, dar prazer, conquistar. Outra, a de ir além do
puro prazer do riso, engajando o leitor e provocando-o, procurando levá-lo a
questionar ou criticar as coisas erradas.
Mas não foi
muito fácil trabalhar, com humor e ironia, um tema delicado e, ao mesmo tempo,
terrível, como é o tema da escravidão animal. Procurei usar humor sempre que
possível, mas com muito cuidado para que, em determinados casos (por exemplo,
quando trato das personagens Megan e Sybil), a graça fosse percebida pelos
leitores como restrita às personagens e às situações que elas vivem, e não como
um sinal de desprezo da autora pelos esforços dos ativistas que estão tentando
expandir o veganismo na vida real. Também tentei trabalhar o humor, além de
outros fatores, de forma a deixar o mais claro possível, para o leitor, que
certas atitudes de certos personagens têm uma atitude correspondente criticável
na vida real. Outras vezes, fiz uso de ironia sutil e ambígua, pelo puro prazer
de escrever ironias. Mais importante ainda, tomei muito cuidado para jamais
banalizar a pavorosa situação dos animais.
AIH: Existe muita resistência ao
reconhecimento dos paralelos entre as maiores atrocidades globais e o
tratamento contemporâneo dos animais nos abatedouros, laboratórios de
experimentação, fazendas de peles, etc., pelo mundo inteiro. Qual a sua reação
a esta resistência? Como você vê as interseções entre diferentes formas de
exploração na sua obra?
RR: Para
mim, é fácil enxergar que a raiz de todas as formas de opressão é a violência.
A violência usa seres sencientes -- sejam eles humanos ou não-humanos, de
qualquer raça, cor, gênero, espécie, etc. -- como se fossem coisas, como se
fossem recursos para os fins do opressor. Todas as vítimas de um campo de
concentração, de um matadouro, de um senhor de escravos, de uma fazenda, ou de
uma guerra, sejam elas seres humanos ou seres não-humanos, são seres com valor
inerente, que estão sendo usados como objeto, ou recurso, ou propriedade
alheia.
No Humana festa eu procuro trabalhar, de
diferentes maneiras, a ideia do opressor comum de animais humanos e
não-humanos. Uma dessas maneiras envolve o personagem Afonso Bezerra Leitão, um
grande proprietário de fazendas de gado e porco às voltas com conflitos de
trabalhadores rurais e ações diretas de uma matuta que tenta defender os
animais.
AIH: Por um lado, a atual superprodução
e a matança de animais não-humanos é sem precedente. Por outro lado, existem um
reconhecimento e uma indignação cada vez maiores quanto à exploração dos
animais não-humanos. Como você vê a evolução do movimento pelo fim da
exploração animal no Brasil?
RR: Um
movimento autêntico pelo fim da exploração animal é aquele em que os ativistas
são veganos e educam as outras pessoas a serem veganas também. Esse movimento
divulga o veganismo ético para mudar o paradigma moral da sociedade e acabar
com o uso de animais como recursos ou propriedade dos humanos. Mas ainda é um
movimento muito pequeno no mundo todo, inclusive no Brasil, embora esteja
crescendo. Infelizmente, o tipo de “defesa” animal que predomina em todo lugar
é o chamado bem-estar animal, que supostamente
torna a exploração mais “humana”, ou humanitária, como se diz no Brasil. Na
realidade, o bem-estar animal perpetua a exploração. Só o veganismo é capaz de
acabar com a violência, a injustiça e a exploração que vitimam os animais.
---
Resumo da palestra/ensaio (2008) de Alexandra Isfahani-Hammond
(professora associada de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia-San
Diego e autora do livro White Negritude: Race, Writing and Brazilian
Cultural Identity).
Os humanimais de Regina Rheda: HUMANA FESTA e o
romance pós-escravidão
A professora Alexandra Isfahani-Hammond
examina o romance de Regina Rheda Humana festa (2008), uma comédia de
costumes pioneira sobre o agronegócio neoliberal pós-escravidão no interior
paulista, a qual delineia as premissas da abolição da exploração animal em
relação às estruturas pós-coloniais de dominação. A professora Alexandra situa
o romance de Rheda no contexto das discussões pós-escravistas brasileiras sobre
raça, nação e dialética humana/animal, desde a antropofagia de Oswald até as
atividades de defensores dos animais.
Essa discussão sobre Regina
Rheda será retrabalhada em um capítulo do atual projeto de livro da professora,
Animal Bodies: Race, Species and Brazilian Cultural Theory [Corpos
animais: raça, espécie e teoria cultural brasileira]. Do protagonista
humano-cum-canino em Quincas Borba (1891) de Machado de Assis,
até os animais de fazenda criados para abate em Amarelo Manga (2002) de
Cláudio de Assis, os animais não-humanos são instrínsecos ao imaginário
brasileiro referente ao conflito e à racialização pós-coloniais. Por meio de
leituras de textos abrangendo desde o Manifesto Antropófago (1928) de
Oswald de Andrade até Humana festa (2008) de Regina Rheda,
Isfahani-Hammond indaga sobre tópicos como a natureza, os animais e os
indígenas; o corpo como máquina; a violência das fazendas e a canibalização;
sexualidade e animalidade; e a questão da carne. De que modo as figuras animais
têm sustentado ou minado os sistemas coloniais e escravagistas de dominação?
----
An abstract of a talk/an essay (2008) by Alexandra
Isfahani-Hammond (Associate Professor of Comparative Literature at
U.C. San Diego, and author of White Negritude: Race, Writing and
Brazilian Cultural Identity).
Regina Rheda’s Humanimals: Humana festa and the Postslavery
Novel
Professor Alexandra Isfahani-Hammond’s
talk investigates Regina Rheda’s Humana festa (2008), a pioneer comedy of manners
about the postslavery, neoliberal agribusiness interior of São Paulo
that delineates the premises of the abolition of animal exploitation
in relation to postcolonial structures of domination. She
situates Rheda’s novel in the context of postslavery Brazilian discussions
of race, nation and human/animal dialectics, from Oswald’s antropofagia
to the activities of animal rights advocates.
This discussion of Regina
Rheda will be revised into a chapter of Isfahani-Hammond’s current book project, “Animal Bodies:
Race, Species and Brazilian Cultural Theory.” From Machado de
Assis’s human-cum-canine protagonist in Quincas Borba (1891)
to the farm animals for slaughter in Cláudio Assis’s Amarelo Manga
(2002), non-humans are intrinsic to Brazilian imaginaries of postcolonial
conflict and racialization. Through readings of texts ranging from Oswald
de Andrade’s Manifesto Antropófago (1928) to Regina Rheda’s Humana festa
(2008), she interrogates topics such as nature, animals and the
indigenous; the body as machine; plantation violence and cannibalization;
sexuality and animality; and the question of meat. How have animal figures
sustained or undermined colonial and slavocratic systems of domination?
----
Palestra de Regina
Rheda numa mesa redonda de escritores brasileiros, no congresso da Brasa, New
Orleans, 2008.
É uma honra estar aqui com minhas
talentosas colegas escritoras e todas essas outras pessoas brilhantes.
O que mais me motiva a escrever
ficção são os temas, e não o ato em si da escrita. Até agora, poucos
foram os momentos em que me sentei ao computador para batucar palavras
aleatórias e esperar que, atrás dos primeiros batuques, viessem outros para
formar uma batucada. E seja qual for o meu tema, estou sempre determinada a
explorá-lo com humor, o que significa que estou destinada a escrever muitas
coisas politicamente incorretas. Já dizia Mark Twain: “There is no humor in
heaven”.
Dentre os temas que tenho trabalhado, vou falar hoje de dois. Um é a
experiência de animais humanos em terra estrangeira. Outro é a injustiça que os
animais humanos cometem contra os animais não-humanos pelo fato de usá-los,
injustiça que parece maior ainda quando nós nos damos conta de que 99,9% do uso
que fazemos dos animais, causando-lhes sofrimento e morte, são só para nosso
prazer, nossa diversão e nosso comodismo.
Sobre a experiência de animais humanos em terra estrangeira, vou ler um trechinho do meu primeiro
romance, Pau-de-arara classe turística, de 1996. Saiu no Brasil pela Record e
está publicado em inglês num volume da University of Texas Press. Nele eu
explorei as peripécias da personagem pícara Rita Settemiglia, uma jovem
brasileira branca, de classe média e de descendência italiana, que troca um
futuro incerto no Brasil pelo sonho da cidadania européia. Ela emigra para a
Inglaterra e em seguida para a Itália, e trabalha ilegalmente, submetendo-se a
atividades muito aquém de sua qualificação profissional e, em certos casos,
incompatíveis com suas convicções
morais, enquanto espera obter um passaporte italiano. Entre as tentativas que
Rita Settemiglia faz de se estabelecer na Inglaterra, está a de se aproximar do
agente de imigração Ian Weston com a intenção secreta de se casar com ele,
virar cidadã inglesa e então se divorciar o mais rápido possível. Ian Weston,
de sua parte, faz planos secretos
de passear com ela pelo Texas, aliando um velho sonho turístico a um sonho de
sexo. No trecho a seguir, em que Ian Weston recebe um telefonema de Rita
Settemiglia, predomina o discurso indireto livre. Por meio desse discurso
indireto livre percebemos que a mãe adotiva de Ian, a idosa Mrs. Weston, não
sabe direito o que está acontecendo
com o filho e não gosta nem um pouco do que pressente:
- Aqui é Ian. Alô, Rita! Como vai? –
o agente virou-se para a parede,
dobrando-se sobre o fone como um ponto de interrogação.
Mrs. Weston sentiu uma pressão em
várias regiões do corpo, não sabia dizer se nos músculos, nas articulações ou
nos tendões. Então era a tal da estrangeira outra vez. Era por esse telefonema
que Ian esperara a tarde inteira, zanzando pela casa como um velho aposentado,
os olhos um pouco mais redondos e mais abertos do que o normal.
Mrs. Weston não pudera tomar seu chá
na mesa da sala, como fazia todas as noites, porque ele ocupara o móvel com uma
papelada infernal, que examinara fazendo um bico com o lábio inferior, mania
que conservava desde menino, quando olhava revistas coloridas sentado no chão.
Primeiro, resolvera estudar o atlas geográfico, rastreando os confins bárbaros
da América do Sul. Depois, espalhara sobre o móvel folhetos turísticos com fotografias do Texas. Em seguida,
depositara o queixo na palma das mãos, com os cotovelos fincados na mesa, e
nessa posição permanecera por mais de trinta minutos, assistindo, no teto, ao
seu desfile particular de quimeras.
- Sim, um wine-bar seria
interessante. Está bem, podemos nos encontrar direto lá, se você preferir. Eu
também gostaria de estar de volta cedo. Até mais tarde.
Ian ia encontrar-se em um bar com
uma americana, talvez do Texas ou então de Buenos Aires, chamada Rita. Uma
boêmia, uma biscatezinha. Moças honradas não se encontram em botequins.
No meu conto “O
Santuário”, publicado numa
antologia de vários autores brasileiros em 2002, depois publicado em inglês no mesmo volume da Utexas Press,
e que vai ser republicado em inglês em janeiro de 2009 na antologia Luso-American Literature pela Rutgers
University Press, eu trabalhei ao mesmo tempo com meus dois temas favoritos – a
experiência estrangeira e a injustiça humana contra os animais. O Santuário”
começa assim:
João decidira permanecer ilegal nos
Estados Unidos para progredir na vida, mas foi rebaixado de ladrão de filé de
frango congelado a ladrão de galinhas de terreiro. Culpa (ele tinha certeza) da
sua confiança no pessoal da igreja e nos imigrantes ilegais que a igreja
tentava ajudar. Agora estava comprometido, tinha de enfrentar a situação. Guiado
pelo mexicano Juan, marcara os xis nos quadradinhos do formulário em inglês que
o pessoal da igreja entregara a eles dois. Os xis garantiam: João tinha
experiência no trabalho proposto, era vegetariano e queria viver seis meses de
graça no Silver Sunshine Farm Sanctuary, como vigia e faz-tudo, em regime de
semivoluntariado, tempo integral.
Sunshine, silver, inglês, americano,
carajo. Com o espanhol João até se virava, mas o inglês era diferente demais do
português. João tentava acordar da alucinação que era o país dos outros, fisgar
algum sentido nas falas e nos gestos das pessoas, montar um cenário palpável em
volta do corpo zonzo. Juan, que tinha mais jeito para idiomas, explicava
algumas coisas para o brasileiro, em portunhol. Silver Sunshine quere dicir Raio
de Sol de Plata, e sanctuary quere dicir… Quer dizer santuário, cortou João,
fazendo os xis nos quadradinhos, sou ruim de inglês mas não sou burro.
O trabalho no santuário era muito
diferente daquele que João imaginara. Ele não limpava cocô de pomba de imagens
de santos, mas tirava cocô de galinha dos abrigos onde elas faziam ninhos; não
monitorava visitas de fiéis a alguma capelinha, mas conduzia vacas e carneiros
entre pastos e currais; não assistia a curandeiros ou médiuns, mas ajudava
veterinários no tratamento de perus obesos, ovelhas mutiladas, porcas
estafadas, bezerros anêmicos. Si, sanctuário puede ser um lugar para la gente
facer oraçons, disse Juan, pero el sanctuário donde nosotros trabajamos es un
refúgio para animals maltratados em hacendas. Por que não explicou antes,
mexicano da porra?
Como se João fosse entender fácil
a explicação. No Brasil, ele jurava, nunca tinha ouvido falar naquilo.
Santuário para cuidar de bicho de fazenda sofrido, só em país rico, de gente
sem o que fazer. País de maricóns, disse o Juan. Non vê los veterinários de
Silver Sunshine? Magricelos, delicadinhos. Já a diretora, o outro completou, a
Miss Susan Wolcott, putaquepariu, se aquilo for mulher, eu sou uma galinha
poedeira. Acá es todo ao contrário. Mujer parece hombre, hombre parece mujer e
gente trabaja para bicho. Riam, João mordia uma coxa de galinha, Juan comia
mais taco.
Agora estou reunindo os dois temas também no meu novo romance, chamado Humana festa, que vai ser publicado no Brasil em outubro pela editora
Record. Entre os personagens principais do romance estão a jovem universitária
Megan, americana, vegan e ativista
pelos direitos animais, e seu namorado brasileiro, Diogo, que estuda
Faculdade de Floresta na Flórida e está se tornando vegano, ou vegan, por influência dela. (Vegan, para quem
não souber, é uma postura ética de respeito ao direito que os animais têm de
não ser usados como propriedade ou recursos dos humanos). Um conflito vivido
pelo casal é o fato de que os pais de Diogo são donos de 4 fazendas de gado e
porcos no Brasil. Eles dois combinaram de
usar um bloquinho de anotações,
onde Diogo marca todas as vezes em que ele acha que Megan está
exagerando na pregação
pró-veganismo, e Megan
marca todas as vezes em que Diogo está sendo especista, isto é, está
discriminando um ser por causa da sua espécie. O romance começa assim:
-- Fuckin’ animal!
Megan lançou a Diogo um olhar de
lâminas. Ele acabava de cometer o erro de sempre. Tinha chamado de animal um
motorista infrator. Megan fez uma marca no bloquinho:
-- Mais um ponto para mim.
-- Desculpe, Megan, animal não é
insulto, eu sei. Mas, na pressa de xingar, a gente não consegue escolher o
vocabulário certo e acaba usando o reacionário.
Megan suavizou a censura dos olhos,
apertou-os no sorriso de namorada. Ela entendia. A maioria das pessoas demora
para aprender coisas novas. E Diogo ainda tinha de trabalhar dobrado: falar
inglês e evitar a linguagem especista ao mesmo tempo.
O infrator ultrapassou à direita,
pulverizado nos pneus estridentes.
-- Watch out, you stupid hog! --
gritou o brasileiro.
Outro corte rápido dos olhos claros.
Outro ponto a favor de Megan. Diogo desculpou-se, É a última vez, honey, juro.
Megan aceitou a desculpa num abraço
lateral. Tudo bem, por enquanto, o namorado fazer uma referência desrespeitosa
a um inocente porco. O mais importante –- por enquanto -- é que ele não comia
mais porco.
Mesmo que o Humana festa seja
um livro bem-humorado, a escravidão
dos animais – isto é, a escravidão de seres que têm interesse em não ser
dominados, usados, maltratados e mortos - é um tema terrível demais para não ser tratado a sério. Um
momento grave do romance é o que vou ler agora. Nesse trecho, Megan está sendo
submetida à cirurgia de Mohs, um procedimento para retirar um tumor maligno na
pele, chamado “câncer basocelular”, que apareceu na pálpebra de um de seus
olhos. O cirurgião, Dr. Stanley, tem como hobby a caça, e a sala de espera de
sua clínica é decorada com os animais caçados que ele mandou empalhar. Durante
a cirurgia, Megan mantém o outro olho aberto e nós acompanhamos as suas
reflexões:
Abrir um olho era bom para frear
os pensamentos. No escuro, eles disparavam, atropelavam-se com os paradoxos e o
medo. No claro, respiravam, ganhavam pontuação e lógica. O basocelular é menos
grave que o espinocelular vírgula que é menos grave que o melanoma ponto e
vírgula quem tem o primeiro está mais suscetível a ter os outros dois ponto. O
olho de Megan tentou caçar no teto algum pensamento alegre. Não mata,
geralmente, mas desfigura, o basocelular, que tende a se manifestar de novo e
que, se não tratado logo, pode destruir nervos, cartilagens e ossos da região
vizinha ponto. Megan sentiu na testa o ar quente que o doutor Stanley soltava
pelo nariz. Aquele ar quente demorava uma eternidade para viajar até a testa
dela e, quando chegava, era como se o doutor Stanley não estivesse perto.
Impossível transpor o vácuo que se forma entre um ser com medo e o resto do
universo. A dor excruciante, o medo mortal são só de quem os sente. Megan
poderia compartilhar com Sybil ou Diogo a dor de um câncer e o medo de morrer,
mas só no nível conceitual. Sofre e morre em solidão cada um dos bilhões de
seres que sofrem ao mesmo tempo e morrem ao mesmo tempo, todos os dias, nas
guerras, nos matadouros, nas celas, nas jaulas. O olho passou do teto para o
rosto do cirurgião. Bonito, aquele rosto. Ainda bem. Pior se fosse um
estrupício. Ter de olhar um estrupício num momento tão crítico seria mais
patético. O doutor Stanley era um quarentão com físico de atleta e cabelo. Seus
olhos azuis não saíam da pálpebra de Megan, e ela imaginou que pudessem se
aventurar por outras partes de seu corpo, em uma oportunidade adequada. As mãos
dele eram suaves como sopros -- e criminosas. Curavam, mas também matavam. O doutor
Stanley era contraditório. Será que existe alguém que não seja? Em uma cultura
toda estruturada sobre a exploração dos seres vulneráveis, parece faltar
consistência ética até ao mais correto dos humanos. O doutor Stanley deu-lhe um
sorriso e uma piscada, e o olho de Megan fugiu para a parede. Seus pensamentos
marcharam para o teto em fila ordenada. Ninguém é puro. Ela, por exemplo,
militava pela abolição do uso de animais em pesquisas científicas, mas não
tinha como escapar da mesma medicina equivocada que os sacrificava aos milhões,
nos laboratórios. Fazer o quê? Suicidar-se? As coisas não mudam de repente e,
enquanto um monte de gente não aprender que os animais não são meios para os
fins da humanidade, uma ativista que se preze tem de continuar a jornada, mesmo
manca, um pé ágil na trilha reta, o outro atolado na torta. Seu olho rastejou
de volta para o rosto do cirurgião e experimentou ficar ali mais um tempinho. A
idade riscava com leveza a pele em torno daquela boca um tanto enjoada, de um
enjoamento de cereja doce demais, quase de batom. Em que trechos daqueles
riscos paravam de se imprimir as curas do doutor Stanley e começavam a se
imprimir seus crimes? Cada humano com suas contradições. Megan, por exemplo,
que lutava pela proibição da caça, agora se excitava com a proximidade do rosto
bonito de um caçador, esquecida do namorado que a esperava na sala e que se
oferecera para pagar a cirurgia. Megan empurrou o olho de volta à parede,
prendeu-o contra ela com a força da culpa. Talvez o doutor Stanley não fosse
contraditório, mas consistente em sua crueldade, violador de organismos
sencientes com o rifle e o bisturi. O doutor Stanley, sádico na caça e na
cirurgia de Mohs, deixaria de propósito, na pálpebra da Megan, um restinho de
câncer que se espalharia pelo seu organismo até matá-la. Não haveria prova do
crime, ninguém poderia fazer nada por ela, prisioneira de guerra no laboratório
frio e isolado, sufocado de medo, fedendo a químico, onde não se permite dó, de
onde não escapa nenhum pedido de ajuda, de onde os animais só saem mortos.
E deixo vocês com essas
imagens horríveis de um
laboratório de cobaias.