Literatura, talento e consciência: Regina Rheda

Entrevista publicada pela ANDA em 22 de março de 2009

 Paulista de Santa Cruz do Rio Pardo, Regina Rheda é uma escritora de grande talento, com trabalho reconhecido no Brasil e no exterior. Formada em Cinema pela Universidade de São Paulo, ela estreou na literatura em 1994 com o livro de contos Arca sem Noé –Histórias do Edifício Copan, que ganhou o prêmio Jabuti no ano seguinte. Em português, tem cinco livros publicados e três participações em antologias de contos. Dois de seus livros e algumas histórias avulsas estão publicados também em inglês, em um volume da University of Texas Press. Suas obras têm sido estudadas em cursos de literatura brasileira de várias universidades norte-americanas e analisadas em ensaios acadêmicos nos Estados Unidos. Em 2006, Regina Rheda traduziu o livro sobre direitos animais Jaulas vazias, do filósofo Tom Regan (Editora Lugano); em 2007, passou a fazer traduções autorizadas de textos do advogado e filósofo Gary L. Francione, cuja abordagem dos direitos animais tem o veganismo como princípio fundamental. Regina, vegana desde 2000, lançou recentemente o livro Humana festa (Editora Record), o primeiro romance brasileiro a abordar, como tema principal, o veganismo e os direitos animais. Nesta entrevista concedida com exclusividade à ANDA para Alexandra Isfahani-Hammond, professora de literatura luso-brasileira da Universidade da Califórnia-San Diego; Fabiane Niemeyer, do grupo de defesa animal Gato Negro; e Rafael Jacobsen, membro da SVB-Porto Alegre e escritor, ela fala sobre a sua trajetória, o novo livro, veganismo e outras questões relacionadas aos direitos animais. Acompanhe.

Fabiane – 1) Qual foi seu primeiro contato com o veganismo e o movimento de defesa animal? Conte-nos um pouco da sua história e o envolvimento com os direitos animais.
Regina – Eu fui uma carnívora inveterada até a idade de 43 anos. “Direitos animais” para mim era uma coisa romântica e distante: salvar as baleias da Antártida, salvar as focas do Canadá. E mesmo achando horrível matar animais para comer, torturá-los em laboratórios, prendê-los em circos, eu nunca tinha parado para pensar sobre o problema, porque achava que os humanos eram mais importantes do que os animais e precisavam usá-los. No máximo, cheguei a pensar que, um dia, acabaria virando vegetariana.
Foi numa tarde do ano 2000, um ano depois de me mudar para os Estados Unidos, que vi na internet uma explicação sobre tudo que os animais sofrem na indústria, desde o momento em que nascem até o momento em que são mortos. A maior parte das informações tratava de fazendas de produção intensiva. Fiquei chocada e comecei a chorar. Chorei feito uma condenada. E jurei que nunca mais consumiria nada que fosse feito às custas dos animais. Naquela noite, meu jantar foi baseado somente em plantas. O curioso é que eu não conhecia, ainda, as palavras vegano e veganismo. Só descobri esses conceitos algumas semanas depois, conversando com uma jovem numa festa. Ela me disse que era “ovovegetariana” e que eu era vegana.
Para tentar fazer alguma coisa pelos animais, além de ser vegana eu passei a doar dinheiro a algumas organizações como a Humane Society, a PETA, a ONG da Doris Day... Eu alternava, às vezes dava dinheiro para uma, às vezes para outra. Um amigo do meu marido, vendo que eu me interessava pela questão, me deu de presente o Animal Liberation, do Peter Singer. Li e, por influência desse livro e das organizações para as quais eu doava dinheiro, passei uns bons anos com uma ideia confusa sobre o que seriam “direitos animais”, sem saber bem se o problema-chave era só o sofrimento dos animais ou o fato de os usarmos, se o certo era não usá-los nunca ou usá-los de vez em quando, se era melhor ser vegano mas se também estava certo ser ovolactovegetariano, ou mesmo comer carne orgânica... Apesar dessa confusão, continuei com meu veganismo.
Então a editora Lugano, de Porto Alegre, me chamou para traduzir Jaulas vazias, do Tom Regan. A partir do Jaulas vazias ficou claro para mim que “direitos animais” significa não usar animais como recursos, mesmo que o uso envolva o mínimo de sofrimento possível. Mas eu continuei mandando dinheiro para aquelas organizações. Finalmente, em setembro ou outubro de 2006, recebi uma newsletter noticiando um debate entre duas posições do movimento nos Estados Unidos: uma dizia que fazer campanhas para diminuir o sofrimento animal na indústria levaria ao fim da exploração animal; outra dizia que essas campanhas são contraproducentes e reforçam mais ainda a exploração dos animais. A PETA e a Humane Society estavam entre as principais representantes da primeira tendência. E um advogado chamado Gary Francione era um tenaz defensor da segunda. Francione dizia também que os defensores dos animais deveriam parar de doar dinheiro para as organizações como aquelas para as quais eu doava, e deveriam tornar-se veganos e empregar seu tempo de ativismo educando sobre o veganismo.
Eu nunca tinha lido nada do Francione, só tinha visto seu nome em uma bibliografia de algum livro, se não me engano de uma feminista. Mas essa postura dele me chamou a atenção e fui ler sua entrevista. Tudo que ele falou ali fez perfeito sentido para mim. Depois de fazer uma pesquisa no Google, entrei em contato com ele para esclarecer umas dúvidas. Parei de doar dinheiro para aquelas organizações e, durante os anos seguintes, traduzi quase todo seu website, que apresenta a abordagem dos direitos animais abolicionista. Em conjunto com ativistas que contatei em listas brasileiras de discussão pela internet, divulguei essas traduções. Agora, quando faço doação, é para o santuário de animais Peaceful Prairie, que é abolicionista e educa as pessoas a serem veganas.
Fabiane – 2) No romance Humana festa você aborda as questões dos direitos animais, feminismo, bulimia e reforma agrária. Você está envolvida com outros movimentos sociais? Qual a relação dos direitos animais com outras lutas sociais por igualdade e justiça?
Regina – Não estou diretamente envolvida com movimentos sociais. Aprendo sobre eles com as notícias ou, no caso de precisar, pesquiso. Fiz parte do movimento estudantil quando estava na faculdade, ainda durante a ditadura, nos anos 70, e durante esse movimento eu ganhei consciência política. Aderi a uma greve para derrubar um diretor reacionário, fiz passeata pelas liberdades democráticas, participei de assembleias, grupos de estudo, grupos de teatro... Queríamos o socialismo. Vi formar-se o embrião daquilo que depois seria o PT. Passei pouquíssimo tempo no movimento, mas o que vivi foi crucial para minha formação. Depois fiquei durante um longo período entre a apatia política e o cinismo...
Com o envolvimento na defesa animal, voltei a pensar mais seriamente nas outras lutas sociais por igualdade e justiça. Afinal, se “direitos animais” significa justiça para todos os seres sencientes, significa justiça também para os humanos, que são seres sencientes.
Não quero dizer com isso que os ativistas pelos direitos animais tenham a obrigação de se engajar em todas as outras lutas; na verdade acho que deve ser melhor eles se concentrarem mais nos animais. Isto porque a instituição da escravidão humana pelo menos já foi abolida, ao passo que a instituição da escravidão animal continua fortíssima e, enquanto ela existir, não vai ser possível mudar de verdade a situação dos animais. A luta pelos animais é muito mais dura, porque até mesmo o mais oprimido dos humanos acredita que está certo explorá-los... Mas todas as formas de opressão estão inter-relacionadas e têm raiz na mesma visão de mundo excludente, autoritária e predatória.
Enfim, o que aprendi com ou sobre os movimentos sociais, incluindo o de defesa animal – e a ligação entre todos eles – acabou me influenciando na criação dos capítulos do meu livro em que aparecem os empregados militantes da fazenda do Bezerra Leitão.
Alexandra – 3) Humana festa é um romance que trata dos direitos animais com humor, qualidade que, segundo muitos, faz falta entre os veganos. Como você compararia o humor, como instrumento para induzir identificação com o sofrimento dos animais, com as táticas da PETA e outras organizações e ativistas que usam imagens e descrições gráficas? Pensando nas táticas mais eficazes para induzir a empatia com a causa dos direitos animais, ando pensando em Susan Sontag que, em Regarding the Pain of Others, nos adverte que imagens do “corpo em agonia” nem sempre estimulam a empatia. Você estaria de acordo?
Regina – Eu acho que imagens de animais em agonia nem sempre estimulam a empatia, mas normalmente estimulam, sim. O sofrimento é empático porque ninguém quer sofrer. Ninguém quer estar na pele daquele que está sofrendo. Acho que imagens documentais de animais sofrendo pelo fato de serem usados pelos humanos são bastante eficazes na educação para o veganismo, desde que os ativistas esclareçam muito bem, sempre, que a solução para o problema não é continuar usando animais que sofram menos, mas sim parar de usá-los de uma vez por todas. Isso não quer dizer que não possa haver momentos de humor nas ações dos ativistas. Mas é preciso tomar muito cuidado com esse humor, porque a questão animal ainda é vista pelo público como uma coisa ridícula. Agregar palhaçada ao que já é percebido como ridículo só pode ser contraproducente para a defesa animal.

Já os meus contos e o romance que abordam a questão animal, por serem ficção, por serem invenção artística, têm uma natureza diferente da natureza do ativismo propriamente dito. Eles têm mais liberdade, admitem (e se enriquecem com) ambivalências, complexidades, irreverência, ao passo que o ativismo é mais focado, mais dirigido.

O Humana festa poderia ser usado em uma ação educativa, mas só como complemento, ilustração, atividade lúdica. Ele não substitui o panfleto nem o texto teórico, muito menos a conversa do educador com o interessado. Ele tem humor porque humor me dá prazer de escrever e torna a leitura prazerosa. No Humana festa, tentei escrever o menor número de cenas de sofrimento possível, só o suficiente para descrever aspectos da exploração animal e tentar causar empatia. Tentei usar humor sempre que possível. Usar mais humor do que horror funciona no romance porque ajuda a manter o leitor interessado no livro, mas acho que não funcionaria numa ação educativa na rua, por exemplo.
Rafael – 4) O seu romance Humana festa é uma das poucas obras de ficção em que o tema central (e mais do que declarado) é o veganismo. Mesmo não sendo, na maioria dos casos, o tema prevalente, a questão dos direitos animais aparece ou, pelo menos, se insinua em várias obras literárias. Na sua visão de ativista e escritora, quais obras ou autores você diria que são mais relevantes nessa vertente?
Regina – Não sei se pode ser chamada de “direitos” a questão animal que se insinua nessas várias obras literárias. Eu não li toda a ficção deste mundo e sei que há várias obras que tratam dos animais com diferentes enfoques ou graus de preocupação. Mas quantas delas, especialmente as ocidentais, vão além da preocupação com o sofrimento e a crueldade, para realmente sugerir, seja de que forma for, que os animais não deveriam ser usados como meios para os fins dos humanos, ou que têm o direito de não ser propriedade? É difícil encontrar um romance ou um livro de contos com essa característica.
Entre autores relevantes da literatura brasileira, um que demonstra algum tipo de preocupação com animais é Guimarães Rosa em diferentes trechos de sua obra, por exemplo, em seu conto “Meu tio o Iauaretê”, onde um matador de onças se arrepende de seu ofício. De Machado de Assis há o “Conto alexandrino”, em que animais são vitimas de cientistas, e “A causa secreta”, em que são vítimas de um sádico. No romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a cachorrinha Baleia é uma personagem com personalidade, e não um objeto. Mas eu acho que é o sul-africano J. M. Coetzee que tem as obras de ficção mais relevantes com respeito à visibilidade da questão da ética animal; ele tem um livro especificamente sobre isso, A vida dos animais, além de uma personagem de grande destaque em pelo menos dois de seus livros, que é a vegetariana Elizabeth Costello. Mas, até agora, a obra de Coetzee, se é que às vezes transcende um pouco o sofrimento e a crueldade que os humanos impõem aos não-humanos, não chegou a assumir o veganismo e a abolição.
Rafael – 5) Mario Vargas Llosa, referindo-se aos romances de Ayn Rand, uma das mais ferozes defensoras da liberdade econômica, afirmou que "toda literatura edificante e de propaganda é ilegível". Você acredita que a arte (seja ela literatura, pintura, teatro, música) pode ser uma forma efetiva de ativismo pelos direitos animais sem que a função estética da obra saia prejudicada? Como você, pessoalmente, lida com essa questão do "equilíbrio" entre arte e ativismo nos seus textos?
Regina – Eu teria algumas coisas para dizer sobre o laissez-faire, que é defendido pela autora que você mencionou, mas prefiro ir direto ao que mais nos interessa aqui.
Para mim, não há assunto proibido em romance ou conto. Mas a minha preocupação principal, ao escrever ficção, é a de fazer uma obra de arte literária; não é a de fazer ativismo. Costumo escrever narrativas movida por um tema que me apaixone. Desta vez, meu tema foi direitos animais.
Para mim, a razão principal para a existência de um romance é permitir ao autor que ele se expresse através de sua obra. O escritor precisa ter total liberdade para se expressar, qualquer que seja o assunto escolhido e qualquer que seja seu estilo. Essa liberdade lhe permite, inclusive, escolher escrever de alguma forma que, no seu entender, ajude a melhorar o mundo. Ele poderá, com seu romance, conseguir ajudar a acabar com alguma injustiça, mas esta não é a principal finalidade de um romance. Esta é (ou deveria ser) a principal finalidade de um livro teórico de caráter filosófico ou científico, ou de ensaios e panfletos educativos. Mas um romance, justamente por poder expressar qualquer coisa e estar aberto a todas as possibilidades formais, não é obrigado a ter o rigor científico, ético ou político dos textos teóricos. Ele pode ter esse rigor (por exemplo, se for um romance de ideias, ou engajado etc.), mas não é obrigado a ter.
Em resumo: eu escrevi o Humana festa para me expressar livremente por meio de um trabalho artístico sobre um tema que considero apaixonante; de quebra, tentei ajudar a melhorar o mundo.
Para equilibrar representação, emoção e conceito da maneira mais artística possível (se é que há um consenso quanto ao que seja “artístico”, nos dias de hoje...), um dos recursos que utilizei foi o humor. Em momentos que pudessem soar mais militantes do que literários (de novo: será que há consenso quanto ao fato de esses dois adjetivos serem excludentes, e até que ponto isso importa, nos dias de hoje?), eu procurei incluir algum fator engraçado ou irônico.
Mas não foi muito fácil trabalhar, com humor e ironia, um tema delicado e, ao mesmo tempo, terrível, como é o tema da escravidão animal. Procurei usar humor sempre que possível, mas com muito cuidado para que, em determinados casos (por exemplo, quando trato de Megan e Sybil), a graça fosse percebida pelos leitores como restrita às personagens e às situações que elas vivem, e não como um sinal de desprezo da autora pelos esforços dos ativistas que estão tentando expandir o veganismo na vida real.
Também tentei trabalhar o humor, além de outros fatores, de forma a deixar o mais claro possível, para o leitor, que certas atitudes de certos personagens têm uma atitude correspondente criticável na vida real. Outras vezes, fiz uso de ironia sutil e ambígua, pelo puro prazer de escrever ironias. Mais importante ainda, tomei muito cuidado para jamais banalizar a pavorosa situação dos animais.
Humana festa é um romance com muitas ideias e alguns personagens que militam por uma causa, então outra preocupação minha foi colocar as frases que são um pouco mais “panfletárias” somente na boca desses personagens, já que, se eles fossem gente de verdade, diriam aquelas frases mesmo. Por exemplo, as personagens Megan e Sybil são ativistas pelos direitos animais, então eu permiti que, às vezes, elas dissessem frases um pouco mais didáticas. Mesmo assim, tentei amenizar o didatismo com algum elemento humorístico. Outra preocupação minha foi usar imagens poéticas.
Em cada letra que escrevi desse romance eu me apliquei ao máximo para dar prazer ao leitor. Escrevo sempre atenta ao prazer da leitura. Se apresento questões terríveis ou desagradáveis, tento equilibrá-las com elementos prazerosos: humor, surpresas, ideias inusitadas, metáforas, narrativa envolvente. E sempre tenho em conta que, depois que o romance passar das minhas mãos para a esfera pública, ele será lido como a esfera pública quiser...
Acho que esse problema da literatura edificante que você levantou pode ser discutido no contexto do debate “arte engajada” versus “arte pela arte”. A verdade é que a literatura engajada tem sido ou valorizada ou desprezada, dependendo da época, do país e do grupo de intelectuais predominante nos meios acadêmicos em que ela tem sido discutida. De um modo geral, no momento atual, o que acontece no meio literário e acadêmico do Brasil (onde nasci e vivi quase toda minha vida) é diferente do que acontece no meio literário e acadêmico dos Estados Unidos (onde moro). No Brasil está predominando um grupo ligado à Teoria Literária que tende a rejeitar a priori a literatura engajada. Nos Estados Unidos está predominando (e aumentando ainda mais, com a chegada das gerações mais jovens) o grupo do Cultural Studies, cuja preocupação principal é o conteúdo ideológico das obras.
Mas, seja lá qual for a tendência predominante, uma pergunta que precisa estar sempre presente é: quem decidiu, e por que decidiu, o que deve e o que não deve fazer parte de uma obra de arte literária? Quem se beneficia dessa decisão e quem se prejudica? No caso da opressão animal, que quase ninguém consegue enxergar neste mundo (que é antropocêntrico) e portanto é praticamente invisível na literatura (que é antropocêntrica), quem se beneficia com a “proibição” da literatura engajada?
Não sei muito bem o que o Mario Vargas Llosa quer dizer com “edificante e de propaganda”. Mas eu, particularmente, considero edificantes obras como (descontando o especismo da maioria delas): Crime e castigo, de Dostoievsky, A leste do Eden de Steinbeck, Vidas secas, de Graciliano Ramos, Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, Mãe Coragem, de Brecht, Parque industrial, de Pagu, e tantos outros textos políticos ou com preocupação social. J. M. Coetzee dá muita evidência à questão da ética animal em pelo menos três de seus livros. Bach, Haendel e Beethoven compuseram música de propaganda religiosa. A pintura Guernica, de Picasso, e o punk rock do Propagandhi são formas de protesto político. Na minha opinião todas essas são obras de grande qualidade.
E uma literatura de propaganda mais explícita, feita para ser usada no ativismo, também pode ter boa qualidade artística, sim, por que não? Ela vai ter muitas limitações, já que é educativa e precisa ser bem clara, bem dirigida e objetiva, para sua mensagem ser compreendida da melhor maneira possível. Mas, dentro dessa limitação, ela pode ser feita com talento e criatividade, e ser considerada uma obra de arte também.
Por fim, uma coisa importantíssima, para a qual artistas e intelectuais precisam ficar muito atentos, é que estão sempre surgindo formas de expressão em que a linha divisória entre arte e não-arte se desloca ou se desfaz, transformando continuamente a experiência estética e desafiando concepções estabelecidas.
Alexandra – 6) Em Humana festa e em contos como “O Santuário”, você faz comparações nítidas entre a exploração de todos os animais, tanto humanos como “outros que humanos” (other-than-humans, nas palavras de Marti Kheel). Nos últimos anos – de Marjorie Spiegel e J. M. Coetzee até as campanhas de PETA (“Holocaust on Your Plate” e “Are Animals the New Slaves?”) – vem crescendo a controvérsia sobre as comparações entre, de um lado, o holocausto e a escravidão africana e, de outro, a exploração dos outros-que-humanos. Como você encaixa seu trabalho neste contexto?
Regina – Essa controvérsia pode ter ocorrido porque: ou os ativistas não explicaram direito, às pessoas que se sentiram ofendidas, o que é especismo e o que é ser tratado como objeto ou propriedade alheia, ou eles explicaram mas essas pessoas não aceitaram a explicação. Talvez seja necessário ter mais cuidado na hora de explicar isso durante o ativismo.
De uma forma ou de outra, a realidade não muda. Qual é realidade? A realidade é que somos todos animais, alguns de nós (brancos ou não) já foram usados como propriedade alheia e tratados como coisas sem interesses, e outros de nós continuam sendo usados e tratados assim.
Se a gente entende que os animais não-humanos têm tanta dignidade quanto os animais humanos, entende também que não é ofensiva a comparação entre um animal humano e outro animal. Mas a questão aqui vai além da mera comparação entre escravos humanos e não-humanos: é uma forma de explicar o problema fundamental da instituição da propriedade de seres sencientes.
Rafael – 7) Na década de 90, antes de se tornar vegana, você trabalhou na TV Cultura de São Paulo como diretora nos programas infantis X-Tudo e Castelo Rá-Tim-Bum. Quais eram as "mensagens" mais importantes que, na época, você buscava passar para as crianças através desses programas educativos? Já havia, então, alguma preocupação sua em incluir algo a respeito do tratamento com os animais? Se hoje exercesse essa mesma função, você procuraria abordar mais intensamente esse tema também na televisão?
Regina – Naqueles programas, a preocupação principal com relação às crianças era aliar o lúdico ao interesse em aprender. Uma equipe vigiava o trabalho sob o aspecto ético e educativo, pedindo para eliminarmos ou corrigirmos as partes que apresentavam erros de qualquer tipo, ou que eram politicamente incorretas, tanto nos textos quanto nas cenas. Mesmo assim, repensando tudo agora, vejo que fazíamos muita coisa que não deveríamos ter feito.
Quanto aos animais, o que nos importava para os programas era sua beleza, seu comportamento no zoológico e na natureza, seu “talento” (pombo-correio, ator de circo) e seu bem-estar... além de seu sabor e seus nutrientes.
Chegamos a fazer no X-Tudo uma reportagem sobre uma pequena ONG que recolhia e cuidava de animais de rua, e sobre uma dondoca que tratava seu cachorro com luxo e mimos exagerados. Mas não tínhamos (pelo menos eu não tinha, nem percebi que alguém tivesse) a menor ideia quanto ao veganismo e ao fim da exploração animal.
Hoje, se fosse trabalhar em programa infantil, eu faria muita coisa diferente, ou pelo menos tentaria influenciar para que fizessem. Muito provavelmente conseguiria fazer uma matéria sobre crianças veganas, por exemplo. Mas acho que minha primeira providência seria propor a troca do nome do programa X-Tudo por outro, que não tivesse nada a ver com sanduíche de hambúrguer com queijo e ovo, nem com qualquer outra coisa feita às custas de animais!
Rafael – 8 ) De acordo com sua vivência e suas observações do atual status da causa abolicionista, com quanto otimismo você enxerga o futuro? Chegaremos, de fato, a testemunhar o fim da exploração animal? Em quanto tempo?
Regina – Nunca penso muito nisso. O futuro não existe. O futuro vai ser o que estamos fazendo agora. O importante é que estamos vivos agora, podendo e devendo ser veganos e espalhar o veganismo agora.
Fabiane – 9) Quais seus próximos projetos? Após a experiência do livro Humana festa, pensa em escrever mais abordando a escravidão animal e outros temas políticos e sociais?
Regina – O Humana festa acabou de sair e ainda estou esperando a poeira assentar... Enquanto isso, aguardo a reedição do meu livro de estreia, o Arca sem Noé, que também vai sair pela Record. (Apesar do título, o Arca sem Noé não trata dos direitos animais).
Foi ótimo participar desta entrevista virtual com vocês, Alexandra, Fabiane, Rafael e Silvana. Muito obrigada!
Fonte: ANDA - Agência Nacional de Direitos Animais